Foram-se as tardes douradas transparentes de azul leve, cheirando a fruta madura. As tardes de sol pálido espreitando por nuvens baixas, com crepúsculos arroxeados e passos de folhas mortas sussurrando pelos recantos entre rabanadas de vento.
Algumas árvores, ali no largo da feira, exibiam já solitárias, toda a nudez descarnada dos seus ramos desvairados.
À saída da cidade, antes da ponte dos mouros, havia uma álea cerrada que alastrava como um incêndio.
O chão do largo da igreja era um tapete castanho. Dos plátanos de copas em chamas, desprendiam-se folhas secas, iam tombando uma a uma, tontas de melancolia, em círculos como gaivotas, deslizando devagar, num torvelinho trémulo, como lágrimas comovidas. O jardim, com a relva dos canteiros salpicada de amarelo, parecia dormitar numa tristeza monótona que só o repuxo quebrava.
E o Outono foi agonizando lentamente. Grave e triste como um requiem. No ar, deixou aquela impressão doce e funda de nostalgia magoada, de último adeus entre ruínas, de adágio quase pungente, de violoncelo de fogo, num suspiro desesperado. Como se a natureza, varada de espanto e solidão, suspensa, nula e atónita, expirasse enfim de vez e o homem não fosse mais do que a sombra de um fantasma à deriva sobre a terra.
Mas por um sorriso divino, cujo esplendor só o hábito nos impede de ver claro, em qualquer canto remoto deste desértico abandono, germinava a seiva da vida, fermentava nos ramos nus, rebentava a terra lavrada e a natureza em silêncio ia retemperando as forças.
E era assim todos os anos, desde o princípio dos tempos, desde que do caos se fez luz, luz viva como um mistério, suave como um milagre, de que o homem é apenas uma minúscula centelha, uma frágil faiúncula, um reflexo fugaz.
Dezembro apareceu chuvoso e baço. O Inverno aproximava-se sobre as cinzas da paisagem agora naufragada em névoa. Os ramos dos choupos, esguios, do outro lado do rio, recortavam-se a traços negros, agrestes, nas colinas esvaídas. Os contornos dos telhados esfumados num céu de chumbo. A água escorrendo pelas fachadas das casas. As últimas folhas avermelhadas colavam-se ao asfalto molhado das ruas. A cidade fustigada por uma morrinha teimosa ininterrupta e miúda cobriu-se de nuvens negras boiando ao sabor do vento que desgrenhava os quintais.
Depois o tempo limpou. Apareceram tímidas as primeiras abertas, derramando uma luz mortiça sobre os laranjais de prata, curvados ao peso dos frutos. E vieram dias de sol. Anoitecia mais cedo. O Natal estava à porta. As árvores do largo da igreja foram enfeitadas com um rosário de lâmpadas ou de estrelas, suavemente suspenso nos seus ramos quase despidos.
As montras iluminadas das casas comerciais atafulharam-se de brinquedos, entre cânticos ternurentos e um repicar longínquo de sinos.
Veio o Natal dos Hospitais, transmitido pela TV. Realizaram-se as festas. Tiveram lugar os convívios. E com uma sensação de paz branda escorrendo mansamente sobre a indiferença metálica dos gestos habituais, sem quase darmos por isso, era a véspera de natal. Na Rua Vaz Monteiro e na Avenida da Liberdade, o trânsito automóvel tornou-se quase febril. Famílias que vinham de longe e atravessavam a cidade a caminho das suas terras de origem. As pessoas corriam de uma montra para a outra, de caixinhas' debaixo dos braços, entrando e saindo das lojas, mexendo e remexendo em tudo o que estava à mão, espreitando os preços, espiolhando prateleiras envidraçadas à procura das últimas compras, assistindo impacientes à confecção dos embrulhos.
Depois o ambiente de euforia quase contagiante foi-se transformado aos poucos numa e espécie de despedida. A multidão ia-se dispersando. «Boas Festas» «Feliz Natal» e cada um esgueirava-se de passo rápido a caminho de casa. Calou-se o ruído do trânsito. E a noite foi descendo como um manto de veludo, sobre a cidade recolhida. Só o latido de um cão rasgando o silêncio lá fora.
À volta da mesa, a família ficou em vigília ardente.
Uma grande paz interior. Na calma profunda da noite, o retinir dos talheres, as conversas quase em surdina. E por um momento breve, a consciência plena de uma simplicidade perdida, revela-nos brandamente todo o sentido das coisas.
Um sopro inefável de Vida cintila na soturnidade outoniça da nossa dimensão humana.
Sinais do quotidiano. O pão, o lume e a dança dos nossos gestos, a ternura e os afectos, o voo casto das palavras, a alegria das crianças, fragmentos cintilantes da realidade envolvente. Tudo ganha transparência. E o segredo da Verdade, parece tão perto e nítido, tão cristalino e claro que chega quase a sentir-se como um perfume de um cântico no silêncio do coração. Como um halo de transcendência ou um sorriso de Deus.
Sabemos então que é Natal.
Afortunados os que têm o privilégio de ler os teus escritos com o toque de poesia que sempre foi possível ler na tua prosa. Este, que acabo de ler, escrito não sei quando, é, seguramente, o exteriorizar do sentimento com que vês, como aliás sempre viste, a realidade que te (nos) envolve, muitas vezes ignorada.
ResponderEliminarUm abraço deste teu eterno Amigo.
Não conhecia a tua escrita.
ResponderEliminarSabia, há muito, que o fazias, pois o José Luís Peixoto e eu, já tínhamos falado sobre isso.
Gostei do que li. Espero continuar a ler-te.
Tomei a liberdade de ser seguidor do teu Blogue.
Até sempre.