sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Adeus

Às vezes é nos silêncios mais medonhos,
Que encontro na luz crua do olhar,
A imensidão perdida dos meus sonhos,
Nos contornos nús e rudes do lugar.


E um grito de infinito em vulcão,
Rebenta em mim como lava de luar,
O verso em flor na minha mão,
Até tocar-me a alma a soluçar.


Que linda a Vida! Adeus, Adeus...
Deixo-vos estes versos que são meus,
E louvo a Deus na eternidade.


Kyrie Eleison! Toquem os céus,
Meus versos brandos como véus,
E doces como lágrimas de saudade.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

"Auto, curta-metragem"

«Eram três velhos na Praça da aldeia, de dentes em piano partido revolvendo os seus fados. Trituravam a Praça e a aldeia toda. Estavam de dentes afiados, os poucos que tinham, coitados! Eram críticos, cáusticos, verdes e silvestres, suados com a morte, ali ao lado. Esta é que é a filha do Prometeu? Perguntava um do canto do banco à beira da Praça. E havia um silêncio medido, com um sacudir de corpo do outro, de olho desperto.

A certa altura eu entrei para a escola primária, circunscrito na minha ingenuidade febril. As professoras nos finais dos anos cinquenta hospedavam-se na casa dos meus pais, entre bolos de bolota que a minha mãe fazia e o serão para trabalhadores que tocava na telefonia. A minha mãe envergonhava-se que eu fosse descalço para a escola, fosse por que fosse. Não houvesse algum percalço no açúcar do seu doce comprou botas e sacola. Chamava-me, e chamo-me, Raul. Mas no meio da criançada, acabei como «sangue azul», numa alcunha de lengalenga cansada. É o filho do Ramalho? Este que vai calçado? Ele que vá para o carago. Já não vê quem está ao lado? E o velho da ponta disse, «quando tu morreres o que querias que dissessem a teu respeito»? E o outro respondeu: «não fez mal, nem fez bem. Viveu!». E aquele que disse isto, esqueceu-se dos gaiatos. Mas perguntou ao de dente cariado: «e tu? querias que dissessem o quê acerca de ti na morte?». «Que tive dias de azar e tive dias de sorte, mas morreu homem honrado!». E este virou o rosto para o último da fila. «E tu querias o quê? O que querias que dissessem na hora da tua morte?». E o velho respondeu, «parecia morto, ainda mexe!». E nós passávamos ali perto, a caminho da escola. Numa ponta da aldeia, num casarão do meu avô vivia o Ferrador «Prometeu». Hercúleo e divino, mastigando entre fogo ardente ferraduras e fagulhas. Era um Deus Grego, hirsuto que tinha uma filha branda. Às vezes pelas vidraças, entre tinteiros e borboletas, nós víamo-la passar de vestido de cetim leve, na sua bicicleta, com nádegas e seios de gelatina. A feiticeira era fina no seu fálico selim, meio menina, meio senhora, atravessava o átrio da escola e voando na sua vassoura, num silêncio de esmola, subia a rua Nova, atravessava a ponte do fundo, que sobre o ribeiro dividia a aldeia, contornava o beiral e o pinheiro e descia a rua Velha, presa na sua vassoura. Que deusa! Oh, que senhora! Com as cuecas brancas no vestido transparente, que nos tornava o sangue quente.
Havia rituais cruéis e humilhantes. Às vezes, no intervalo, um dos mais velhos gritava «Barrela! Barrela!» e aprisionavam os mais novos, baixavam-lhe as calças e com uma mistura de cinza e ervas viscosas, atafulhavam-lhe as virilhas. Hoje recordo-me disto à saída do «Santo Ofício», o bar mais Ary da cidade. Duas medalhas penduradas. Dois quartos lugares num Rally. Doutor Fernando Branco Rodrigues e senhor Álvaro de Carvalho. Num carro primário, jeep Nissan Terrano I, entre outros de alta cilindrada. Um triunfo. Uma grande vitória nos distritais. Deram-me boleia até Portalegre. Passou-se tudo sem referências. No entanto merecem esta, no meio do artigo, semi-onírico que vou escrevendo. Sonho ou realidade? Sei lá. Corta! Olha a curva! Acelera! Um cheiro a gasóleo, ervas pisadas. As árvores em fuga no canto do olhar. Lama no pára-brisas. Corta! Corta! Corta! Por essa altura, no princípio da Primavera, já eu subia a rua de braço dado com Régio, que entrou no Alentejano, por uma passadeira vermelha. Ele, enfim, mandou engraxar os sapatos. Saí de braço dado com o João Paulo XXIII. Descemos a rua do Comércio. Uma multidão nas janelas e nos passeios. Quem é aquele que vem de túnica branca e com o Cóias? Foi o velho que perguntou do alto da sua sonolência. Corta! Era domingo na noite anterior. Tinha-me deitado tão tarde que adormeci profundamente.

Corta! Acordei. No campo do Eléctrico, ao lado do meu quarto, o jogo de futebol tinha começado. Corta! Corta! Gritava o treinador. Uma andorinha chilreava!
Já havia flores no campo. Frágeis, cintilantes, coloridas, sorrindo ao sabor da brisa…»

terça-feira, 15 de março de 2011

José Luís Peixoto:

O nosso tratamento pessoal é um pouco mais familiar graças à sua condescendência. No entanto, utilizo, neste breve artigo a linguagem que me parece mais adequada e elegante.
Quando o José Luís há duas semanas atrás, no lançamento do «Livro», aqui no Centro de Artes e Cultura, disse: «não fácil viver da escrita», eu lembrei-me de Régio que escreveu, «só os diletantes supõem que escrever é um prazer igual aos prazeres fúteis,...» - não cito literalmente porque não me recordo.
Por mim vamos direito ao assunto: «tudo está bem quando acaba bem» - Skakespeare. Peço desculpa a todos os intelectuais e poetas da Freguesia de Galveias que teriam, porventura, mais legitimidade para escrever este artigo. Mas foi-me pedido. Aqui me têm, para dizer o que penso sobre a proposta de atribuição do nome de José Luís Peixoto a uma rua da Freguesia, aprovada por unanimidade na Câmara Municipal de Ponte de Sôr. Ponha-se no meu lugar. Digo o quê? Quantas dezenas de pessoas naturais de Galveias não mereceriam uma referência na toponímica local - a única forma da sociedade prestigiar aqueles que mais admira? Já vê como é polémica a questão? Já vê como as palavras me pesam? Já vê quanto me preocupo com a fossilização de um cometa que brilha ainda no nosso espaço literário, e quanto isso me assusta? Pelas razões que imagina, e que agora não vêm ao caso. Por outro lado, eu sei que a sua genialidade, que varia na razão inversa da sua extrema humildade, está imune e é alheia a estes condicionalismos da fama a que chamará, sem pestanejar, apenas terrenos. É claro que vai continuar incólume com os aplausos da crítica, com esse estilo de escrita, que como Proust disse, «não é uma questão de técnica mas de visão».
Com esse modelo de escrita, repito, modulada por um silêncio sofrido até ao limite de caos e da solidão, até à exaustão sísifica, para no parágrafo seguinte nos rejuvenescer com palavras tão poéticas e doces, de um humanismo tão transcendente e de uma cristalinidade única, tão musical e genuína.
Tem sido objecto de todas as honrarias a que um jovem escritor por aspirar, quer a nível nacional quer internacional.
Nunca, no entanto, traiu as suas raízes autênticas. Portanto, acho legítimo que a Freguesia se antecipasse a qualquer outra, no tempo próprio.
Os poderes públicos já decidiram. Você já me conhece. É claro que prefiro passar anónimo na rua com o nome de qualquer outro, a ter o meu numa depois de já cá não estar.
Mas passar vivo na rua com o seu próprio nome parece-me ser um sonho para qualquer escritor, novo ou velho. E se Deus lho realizou é porque de facto o merece.
No fim de contas, a sociedade, sublinho, não tem outra forma superior de honrar quem de facto a dignifica num dado momento histórico... de acordo com a «circunstância», como diria Gasset.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Um sorriso de Deus

Foram-se as tardes douradas transparentes de azul leve, cheirando a fruta madura. As tardes de sol pálido espreitando por nuvens baixas, com crepúsculos arroxeados e passos de folhas mortas sussurrando pelos recantos entre rabanadas de vento.
Algumas árvores, ali no largo da feira, exibiam já solitárias, toda a nudez descarnada dos seus ramos desvairados.
À saída da cidade, antes da ponte dos mouros, havia uma álea cerrada que alastrava como um incêndio.
O chão do largo da igreja era um tapete castanho. Dos plátanos de copas em chamas, desprendiam-se folhas secas, iam tombando uma a uma, tontas de melancolia, em círculos como gaivotas, deslizando devagar, num torvelinho trémulo, como lágrimas comovidas. O jardim, com a relva dos canteiros salpicada de amarelo, parecia dormitar numa tristeza monótona que só o repuxo quebrava.
E o Outono foi agonizando lentamente. Grave e triste como um requiem. No ar, deixou aquela impressão doce e funda de nostalgia magoada, de último adeus entre ruínas, de adágio quase pungente, de violoncelo de fogo, num suspiro desesperado. Como se a natureza, varada de espanto e solidão, suspensa, nula e atónita, expirasse enfim de vez e o homem não fosse mais do que a sombra de um fantasma à deriva sobre a terra.
Mas por um sorriso divino, cujo esplendor só o hábito nos impede de ver claro, em qualquer canto remoto deste desértico abandono, germinava a seiva da vida, fermentava nos ramos nus, rebentava a terra lavrada e a natureza em silêncio ia retemperando as forças.
E era assim todos os anos, desde o princípio dos tempos, desde que do caos se fez luz, luz viva como um mistério, suave como um milagre, de que o homem é apenas uma minúscula centelha, uma frágil faiúncula, um reflexo fugaz.

Dezembro apareceu chuvoso e baço. O Inverno aproximava-se sobre as cinzas da paisagem agora naufragada em névoa. Os ramos dos choupos, esguios, do outro lado do rio, recortavam-se a traços negros, agrestes, nas colinas esvaídas. Os contornos dos telhados esfumados num céu de chumbo. A água escorrendo pelas fachadas das casas. As últimas folhas avermelhadas colavam-se ao asfalto molhado das ruas. A cidade fustigada por uma morrinha teimosa ininterrupta e miúda cobriu-se de nuvens negras boiando ao sabor do vento que desgrenhava os quintais.
Depois o tempo limpou. Apareceram tímidas as primeiras abertas, derramando uma luz mortiça sobre os laranjais de prata, curvados ao peso dos frutos. E vieram dias de sol. Anoitecia mais cedo. O Natal estava à porta. As árvores do largo da igreja foram enfeitadas com um rosário de lâmpadas ou de estrelas, suavemente suspenso nos seus ramos quase despidos.
As montras iluminadas das casas comerciais atafulharam-se de brinquedos, entre cânticos ternurentos e um repicar longínquo de sinos.
Veio o Natal dos Hospitais, transmitido pela TV. Realizaram-se as festas. Tiveram lugar os convívios. E com uma sensação de paz branda escorrendo mansamente sobre a indiferença metálica dos gestos habituais, sem quase darmos por isso, era a véspera de natal. Na Rua Vaz Monteiro e na Avenida da Liberdade, o trânsito automóvel tornou-se quase febril. Famílias que vinham de longe e atravessavam a cidade a caminho das suas terras de origem. As pessoas corriam de uma montra para a outra, de caixinhas' debaixo dos braços, entrando e saindo das lojas, mexendo e remexendo em tudo o que estava à mão, espreitando os preços, espiolhando prateleiras envidraçadas à procura das últimas compras, assistindo impacientes à confecção dos embrulhos.
Depois o ambiente de euforia quase contagiante foi-se transformado aos poucos numa e espécie de despedida. A multidão ia-se dispersando. «Boas Festas» «Feliz Natal» e cada um esgueirava-se de passo rápido a caminho de casa. Calou-se o ruído do trânsito. E a noite foi descendo como um manto de veludo, sobre a cidade recolhida. Só o latido de um cão rasgando o silêncio lá fora.

À volta da mesa, a família ficou em vigília ardente.
Uma grande paz interior. Na calma profunda da noite, o retinir dos talheres, as conversas quase em surdina. E por um momento breve, a consciência plena de uma simplicidade perdida, revela-nos brandamente todo o sentido das coisas.
Um sopro inefável de Vida cintila na soturnidade outoniça da nossa dimensão humana.
Sinais do quotidiano. O pão, o lume e a dança dos nossos gestos, a ternura e os afectos, o voo casto das palavras, a alegria das crianças, fragmentos cintilantes da realidade envolvente. Tudo ganha transparência. E o segredo da Verdade, parece tão perto e nítido, tão cristalino e claro que chega quase a sentir-se como um perfume de um cântico no silêncio do coração. Como um halo de transcendência ou um sorriso de Deus.

Sabemos então que é Natal.