sexta-feira, 8 de julho de 2011

"Auto, curta-metragem"

«Eram três velhos na Praça da aldeia, de dentes em piano partido revolvendo os seus fados. Trituravam a Praça e a aldeia toda. Estavam de dentes afiados, os poucos que tinham, coitados! Eram críticos, cáusticos, verdes e silvestres, suados com a morte, ali ao lado. Esta é que é a filha do Prometeu? Perguntava um do canto do banco à beira da Praça. E havia um silêncio medido, com um sacudir de corpo do outro, de olho desperto.

A certa altura eu entrei para a escola primária, circunscrito na minha ingenuidade febril. As professoras nos finais dos anos cinquenta hospedavam-se na casa dos meus pais, entre bolos de bolota que a minha mãe fazia e o serão para trabalhadores que tocava na telefonia. A minha mãe envergonhava-se que eu fosse descalço para a escola, fosse por que fosse. Não houvesse algum percalço no açúcar do seu doce comprou botas e sacola. Chamava-me, e chamo-me, Raul. Mas no meio da criançada, acabei como «sangue azul», numa alcunha de lengalenga cansada. É o filho do Ramalho? Este que vai calçado? Ele que vá para o carago. Já não vê quem está ao lado? E o velho da ponta disse, «quando tu morreres o que querias que dissessem a teu respeito»? E o outro respondeu: «não fez mal, nem fez bem. Viveu!». E aquele que disse isto, esqueceu-se dos gaiatos. Mas perguntou ao de dente cariado: «e tu? querias que dissessem o quê acerca de ti na morte?». «Que tive dias de azar e tive dias de sorte, mas morreu homem honrado!». E este virou o rosto para o último da fila. «E tu querias o quê? O que querias que dissessem na hora da tua morte?». E o velho respondeu, «parecia morto, ainda mexe!». E nós passávamos ali perto, a caminho da escola. Numa ponta da aldeia, num casarão do meu avô vivia o Ferrador «Prometeu». Hercúleo e divino, mastigando entre fogo ardente ferraduras e fagulhas. Era um Deus Grego, hirsuto que tinha uma filha branda. Às vezes pelas vidraças, entre tinteiros e borboletas, nós víamo-la passar de vestido de cetim leve, na sua bicicleta, com nádegas e seios de gelatina. A feiticeira era fina no seu fálico selim, meio menina, meio senhora, atravessava o átrio da escola e voando na sua vassoura, num silêncio de esmola, subia a rua Nova, atravessava a ponte do fundo, que sobre o ribeiro dividia a aldeia, contornava o beiral e o pinheiro e descia a rua Velha, presa na sua vassoura. Que deusa! Oh, que senhora! Com as cuecas brancas no vestido transparente, que nos tornava o sangue quente.
Havia rituais cruéis e humilhantes. Às vezes, no intervalo, um dos mais velhos gritava «Barrela! Barrela!» e aprisionavam os mais novos, baixavam-lhe as calças e com uma mistura de cinza e ervas viscosas, atafulhavam-lhe as virilhas. Hoje recordo-me disto à saída do «Santo Ofício», o bar mais Ary da cidade. Duas medalhas penduradas. Dois quartos lugares num Rally. Doutor Fernando Branco Rodrigues e senhor Álvaro de Carvalho. Num carro primário, jeep Nissan Terrano I, entre outros de alta cilindrada. Um triunfo. Uma grande vitória nos distritais. Deram-me boleia até Portalegre. Passou-se tudo sem referências. No entanto merecem esta, no meio do artigo, semi-onírico que vou escrevendo. Sonho ou realidade? Sei lá. Corta! Olha a curva! Acelera! Um cheiro a gasóleo, ervas pisadas. As árvores em fuga no canto do olhar. Lama no pára-brisas. Corta! Corta! Corta! Por essa altura, no princípio da Primavera, já eu subia a rua de braço dado com Régio, que entrou no Alentejano, por uma passadeira vermelha. Ele, enfim, mandou engraxar os sapatos. Saí de braço dado com o João Paulo XXIII. Descemos a rua do Comércio. Uma multidão nas janelas e nos passeios. Quem é aquele que vem de túnica branca e com o Cóias? Foi o velho que perguntou do alto da sua sonolência. Corta! Era domingo na noite anterior. Tinha-me deitado tão tarde que adormeci profundamente.

Corta! Acordei. No campo do Eléctrico, ao lado do meu quarto, o jogo de futebol tinha começado. Corta! Corta! Gritava o treinador. Uma andorinha chilreava!
Já havia flores no campo. Frágeis, cintilantes, coloridas, sorrindo ao sabor da brisa…»

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